sábado, 25 de outubro de 2008

SUICÍDIO COLETIVO E O ASSASSINO INVISÍVEL DE SANTO ANDRÉ

Por Rebecca Santoro
22 de outubro de 2008

Eu tinha pensado em escrever algo sobre mais essa de tantas tragédias que já aconteceram nesse país envolvendo a morte de jovens e adolescentes. Dessa vez foi em Santo André, São Paulo. Mas, quando li o que a juíza Marli Nogueira escreveu sobre o fato, resolvi adotar o artigo, porque, como se costuma dizer nesses casos, 'tirou daqui' (da minha boca, da minha fala, do meu pensamento). Realmente, concordo com ela quando diz que não fosse pelo 'politicamente correto' o desfecho do episódio muito provavelmente teria sido outro - e não tão desastroso para as vítimas do seqüestro.

Um dos erros foi sempre ter tratado o criminoso como um rapaz bom que apenas estivesse sofrendo de um surto passageiro de ciúmes em relação à sua ex-namorada e/ou de não aceitação de uma rejeição por parte da mesma. Não. Ninguém surta de véspera. Ou seja, ninguém se programa para cumprir uma vingança, encontra uma arma, munição, planeja oportunidade - tudo num surto, num momento de desespero. O crime foi premeditado, planejado - um colega de trabalho do assassino já sabia sobre os planos de Lindembergue para matar Eloá.

Friamente, Lindembergue enganou a todos os envolvidos no episódio, fazendo-se de emocionalmente instável, indeciso entre acabar com tudo, matando Eloá e até a si mesmo, ou libertar as reféns e entregar-se à polícia. Fez com que todos se enganassem sobre o que sempre fora sua determinação, desde o começo do seqüestro: vingar-se de Eloá, tirando-lhe a vida. Sim, sempre foi esta a sua determinação e não importa o que acontecesse - a menos que tivesse sido alvejado pela polícia -, ele assim teria procedido, matando Eloá, com ou sem invasão da polícia. Tanto foi assim que a amiga da menina, a também adolescente de 15 anos Naiara, depois de já ter sido libertada do cativeiro, resolveu, um dia depois (e aqui realmente houve falha da polícia, por permitir que Naiara se aproximasse da porta do apartamento sem a escolta de um policial que a tivesse impedido de seguir o impulso de voltar ao cativeiro), deliberadamente retornar ao cativeiro. É claro que Naiara fez isso porque acreditava que Lindembergue cairia em si e que jamais chegaria às vias de fato em cumprir suas ameaças.

Entretanto, agora se sabe que, caso tivesse se tratado de surto de adolescente apaixonado e descontrolado, certamente, o assassino não teria hesitado em se matar logo depois de ter baleado Eloá e talvez nem tivesse atingido a amiga Naiara. Mas não, ele atirou contra as meninas indefesas, atirou contra a polícia e, depois que sua munição acabou (uma das balas falhou, sabe-se agora), simplesmente o malandro colocou a arma no chão, as mãos para o alto e se rendeu. Ou seja, um covarde - como o são todos os frios assassinos.

Se houve alguma falha da polícia foi a mesma que cometeram todos os envolvidos: acreditaram que se tratasse apenas de um jovem descontrolado por ciúmes. Não. Era um assassino descontrolado por ciímes. São coisas bem diferentes. A polícia demorou a perceber que se tratasse desta segunda situação. Os policiais que estiveram lá, durante o seqüestro, sabem exatamente do que eu estou falando. Deram todas as chances que poderiam para ver configurada a primeira hipótese. Mas, infelizmente, para todos os envolvidos e para todos nós que, querendo ou não, acabamos acompanhando o caso, o que se confirmou foi a segunda. Por isso, a decisão de se preparar para a invasão do cativeiro - o apartamento onde morava Eloá. Havia escutas e informações de que o rapaz se preparava para assassinar as meninas, com ou sem invasão. O assassino sabia da movimentação policial no sentido de invadir o apartamento e sabia, igualmente, que já não conseguiria enganar mais ninguém por mais tempo.

Por que não alvejaram o assassino quando, aparentemente, tiveram esta chance? Ora, como bem o disse o comandante do GATE, a tropa de elite da Polícia Militar de São Paulo, porque a mídia inteira e os representantes dos direitos humanos cairiam em cima da polícia, como urubu sobre carniça, dizendo que não se deveria ter matado um jovem de 22 anos que apenas estava descontrolado, com toda uma vida pela frente para se arrepender, blá, blá, blá... Alguém tem a menor dúvida de que era exatamente isso o que aconteceria?

Se houve ou não disparo de tiro por parte de Lindembergue antes da explosão da porta do apartamento pela polícia e da invasão não se sabe ao certo. Os policiais dizem que sim, a imprensa e os 'especialistas de plantão' dizem que não. A Globo não tem mostrado, mas a Record apresentou, com exclusividade, uma outra gravação, feita de local bem próximo ao do cativeiro, na qual se ouve, nitidamente, um primeiro disparo de arma de fogo, antes da explosão da porta do apartamento onde as meninas eram mantidas como reféns. A nova advogada do assassino já se apressou em dizer que ele não atirou nas meninas antes da invasão da polícia... Ah, bom! Então o 'pobrezinho' só atirou nas duas meninas - em sua ex-namorada e em sua amiga (e não em duas desconhecidas) - por causa do susto... Estava tão assustado que mirou na cabeça e na virilha de uma e na cabeça da outra, correu para o corredor e começou a atirar em direção aos policiais que invadiam o apartamento e, depois, como já descrevi, rendeu-se como um covarde. Ora, isso não é atitude de gente desesperada e sim de gente má, sanguinária, vingativa e, repito, COVARDE!

Vejam o que o próprio assassino diz sobre os tiros, nos vídeos abaixo, de reportagem exclusiva da Record (o vídeo da reportagem foi retirado do ar pela emissora).

Se a polícia não tivesse invadido aquele apartamento naquela altura, o mais provável é que nem Naiara tivesse conseguido ser salva. Essa é a verdade. E é verdade também que, mesmo que Lindembergue não tenha disparado contra as meninas antes da invasão do apartamento pelos policiais, o testemunho de Naiara, muito provavelmente, confirmará a versão dos policiais (a de que houve disparo por parte do assassino antes da invasão), para não permitir que haja nem uma espécie qualquer de atenuante que possa vir a diminuir a pena com a qual Lindembergue venha a ser condenado. Ele é um assassino frio que merece a pena máxima de 30 anos a ser cumprida INTEGRALMENTE em regime fechado (se é que existe esta possibilidade aqui neste país).

Outra coisa que ninguém fala é sobre o fato de que uma menina de 12 anos (a idade em que Eloá teria começado o namoro com Lindembergue) não deveria ter podido namorar com um jovem de 19 anos. Nesta fase da vida, essa diferença de idade entre os dois configurava praticamente um quadro de pedofilia. Meninas de 12 anos são meninas. Rapazes de 19 anos já são homens. Ninguém viu isso? Tudo bem, às vezes os pais não conseguem mesmo impedir que seus filhos cometam erros. Mas, por três anos seguidos????

Igualmente, há sempre os oportunistas de plantão para falar de 'desarmamento'. Se o jovem não tivesse tido acesso à uma arma de fogo... Ora, se ele não tivesse tido acesso a uma arma de fogo, teria cometido o crime com outra arma qualquer, para começo de conversa, e talvez até de forma bem mais perversa e dolorosa para as vítimas. Assim são, afinal, cometidos a maior parte dos assassinatos chamados de 'passionais' - sem arma de fogo. Dizem que o rapaz estaria com duas armas - uma sua (é claro, ilegal) e a outra que teria sido conseguida dentro da própria casa da vítima. Agora que se sabe que o pai de Eloá era um ex-PM de Alagoas que estava sendo procurado naquele Estado sob a acusação de ter cometido vários assassinatos, pode-se deduzir, obviamente, que, na convivência com a família, durante os três anos de namoro, Lindembergue devesse saber, perfeitamente, da existência de uma arma de fogo na casa de Eloá. E, naturalmente, foi atrás da arma para que suas vítimas não pudessem tentar reagir contra ele, em futura oportunidade, com aquela arma. Tanto é assim, que ele jamais a tenha utilizado durante o seqüestro.

Entretanto, se tanto Eloá como Naiara tivessem tido noções de defesa pessoal e até mesmo de manuseio de armas de fogo, quem sabe o desfecho do caso não tivesse sido outro? Afinal, as meninas estiveram, na maior parte do tempo, em duas e o assassino era um só. Há vários casos no quais as prováveis futuras vítimas fatais de determinada ação violenta, em se vendo diante de uma situação extrema de 'matar ou morrer', conseguiram reagir com armas de fogo, matando ou afugentando seus algozes - todos, no fundo, uns grandes covardes.

Enfim, fico com o que disse, em coletiva, o comandante Gate, que defende a ação da tropa: “O Gate não errou, quem errou foi o Lindemberg. Ele errou de ter procurado uma arma, premeditado o seqüestro, ficar lá cinco dias e fazer o que fez no final. A única pessoa que errou foi ele”.

Tudo bem, a gente sabe que não foi só o marginal que errou. Temos vindo errando todos nós, pessoas de bem, e não é de hoje e nem somente sobre esta questão de como lidar com a violência. Temos permitido que não só o discurso, mas também a prática, cada vez mais institucional, do 'politicamente correto' subverta nossos valores, relativize nossas noções de certo e de errado, bem como de verdade e de mentira. Mesmo que não concordemos com o que se fale e com o que se faça, temos permitido, muitas vezes, que a mentira vire Lei e que quem não esteja de acordo simplesmente seja transformado em criminoso.

Esta falta de noção moral, de solidez de princípios, de apoio social e coletivo às atitudes individuais que deveriam tranqüilamente se enquadrar entre as corretas, as normais, fazem com que não saibamos como reagir a uma série de estímulos para os quais deveríamos ter respostas imediatas - todas a favor da vida, do correto, do justo, do humano. Ao contrário, todos os transgressores sabem exatamente como nos atacar, sem um segundo qualquer de reflexão que seja sobre nenhuma dúvida - todos eles cerebralmente preparados para justificar suas atitudes com base em tergiversações sobre os fatos, sobre a realidade e, principalmente, sobre o certo e o errado. São sociopatas, intencionalmente produzidos por anos e anos de pregação ideológica, SEM NENHUMA CENSURA, incapazes de raciocinar para além daquilo que foi programado em seus cérebros. São zumbis sociopatas que formam um exército teleguiado de revolucionários em potencial, prontos para aniquilar os seres honestos, produtivos e pensantes das sociedades.

O que acontece é que temos falhado no combate à violência, no resgate dos valores familiares, na retomada do ensino competente nas escolas, baseado, principalmente, em fatos históricos verdadeiros, porque estamos todos a cometer o mesmo erro que a polícia e todos os envolvidos no seqüestro de Santo André cometeram: acreditaram que estivessem lidando com uma pessoa normal, de boa índole, de bons princípios e que estivesse apenas tendo um surto de descontrole emocional. Não, senhoras e senhores, estamos lidando com indivíduos "sobre ou sub-humanos", como queiram, cujos cérebros, de tão deformados, os transformaram quase que numa outra espécie de seres viventes que, em comum conosco, só têm mesmo, e praticamente, a carcaça - o corpo e suas funções biológicas.

A verdade, que ninguém quer admitir que já enxerga, é que chegamos ao impensável. Chegamos ao ponto crucial de 'ou eles ou nós' e, por incrível que pareça, estamos deixando que nos matem, a todos, um por um, sem esboçarmos reação. Fica todo mundo tentando ficar o mais invisível possível (escondendo suas riquezas, suas conquistas, seus dotes físicos e mentais), para ver se consegue ficar o maior tempo possível (se puder, quem sabe, com sorte, a vida toda) sem ser agredido pela violência do faroeste das ruas e/ou do patrulhamento social e ideológico. Assim, pode ser que realmente consigamos sobreviver até um fim, digamos, natural, de nossas vidas egoístas. Mas, com certeza, deixaremos um mundo no qual será impossível para nossos filhos e netos sobreviverem até o mesmo fim. Nossa covardia nos exterminará a todos e a nossos descendentes.

Pois é, eu falei que não iria escrever e acabei escrevendo. Mas, não deixem de ler o excelente artigo da juíza Marli Nogueira e, depois, a fábula do que seria a estória do Chapeuzinho Vermelho sob o politicamente correto. Ela acaba sendo responsável pelo seu extermínio - só que inconscientemente, como um estúpido zumbi mentalmente deformado.

Assassino invisível

Marli Nogueira
Juíza do Trabalho
Brasília
Tenho ouvido as mais disparatadas opiniões a respeito do seqüestro em Santo André, inclusive de pessoas que, em razão de sua autoridade, tinham a obrigação de não ser tão superficiais. Há quem diga, por exemplo, que ele resultou de uma "arraigada cultura machista". Mentira! Ele resultou, isso sim, de uma paixão, doença da alma que, na ausência de antídotos fortes que só podem ser produzidos mediante uma excelente formação moral que dê estrutura ao indivíduo, acaba extravasando de seus bordos e causando tragédias como essa. Paixão, como essas autoridades deveriam saber, deriva do termo grego pathos, que significa exatamente "doença". Dele vêm os demais termos ligados ao mesmo tema, como "patologia" e "patológico". E, como doença da alma, pode acometer homens ou mulheres. Aliás, não são tão raros assim os casos de mulheres que matam seus maridos por ciúmes, exatamente como fez o rapaz de Santo André. Pretender utilizar esse caso para estimular mais desavenças, colocando mulheres contra homens, é, no mínimo, uma irresponsabilidade.

Outra opinião completamente distorcida é a de que o crime decorre da "permissão exagerada" do uso de armas. Mais uma mentira da grossa! Ou será que alguém imagina que o seqüestrador-assassino comprou a sua arma em um estabelecimento comercial autorizado, mediante a apresentação do porte de armas e, ainda por cima, a registrou regularmente? Ele mesmo afirmou que "comprar uma arma é facílimo". E é mesmo. Basta contatar um bandido qualquer, pagar-lhe o preço solicitado e pronto. Esse papo de desarmamento (que fatalmente voltaria à baila após o "sucesso" da Lei Seca) é conversa mole para boi dormir. O Brasil somente poderá aceitar uma política de desarmamento no dia em que o governo conseguir impedir por completo a entrada de armas contrabandeadas no país. E não só isso. Deverá, primeiro, retirar as armas de todos os bandidos. Onde já se viu deixar a população desarmada em meio a milhares (ou milhões, talvez) de bandidos que as utilizam para matar cada um de nós? Desproteger os justos enquanto não se toma medida alguma contra os injustos é o cúmulo da injustiça.

Não sejamos hipócritas! Na verdade, o grande responsável pela morte da adolescente Eloá foi o "politicamente correto", esse assassino invisível de valores, que tantas conseqüências desastrosas já acarretou. Se a sociedade entendesse que o correto é punir o agressor e defender a vida da vítima, ela certamente não estaria morta agora. Seu seqüestrador sim, poderia estar em seu lugar. É exatamente para preservar a vida da vítima em mãos de bandidos como ele que a polícia possui atiradores de escol. Mas ai da polícia se resolvesse se valer de algum desses atiradores para, à custa da vida de seu seqüestrador, salvar a menina-refém! Toda a turma dos Direitos Humanos e dos defensores do Estatuto da Criança e do Adolescente estaria, agora, vociferando contra a instituição.

Essa gente parece não compreender que a partir do momento em que alguém decide, deliberadamente, infringir todas as regras da boa convivência, deve arcar com os custos dessa decisão. Punir os maus e defender as suas vítimas não é favor algum, mas uma obrigação. Até os antigos gregos já sabiam disso. Ensina Platão que quando Hermes indagou a Zeus se deveria distribuir a arte da justiça e do respeito a todos os homens, indistintamente, este respondeu: "A todos. Que todos os compartilhem, porque as Cidades não poderiam surgir se apenas poucos homens os detivessem, assim como acontece com as outras artes. Aliás, em meu nome, estabeleça como lei que aquele que não sabe compartilhar o respeito e a justiça seja morto como um mal da Cidade".

Mas como há séculos a humanidade vem se afastando cada vez mais dos valores que plasmaram a nossa civilização, a própria vida se encarrega da cobrar-lhe por esse desatino, e de maneira impiedosa. Casos como esse só podem mesmo resultar em tragédias, com imensa dor não apenas para a família das vítimas, como para todos os homens e mulheres de bem que ainda se pautam pelos poucos valores que ainda nos restam. Mas esses casos não constituem mais novidade alguma. Cada vez se tornam mais freqüentes e também mais violentos. E assim continuará sendo até que a sociedade, cansada de iniqüidades e dos discursos retóricos que lhes dão ensejo, resolva pôr um basta a esse estado de coisas, retomando os valores que permitiram sua agregação. E um deles é, justamente, o de fortalecer (em todos os sentidos) aqueles que, como a polícia, existem para protegê-la.

Chapeuzinho Vermelho (politicamente correto)


Era uma vez uma jovem chamada Chapeuzinho Vermelho que vivia à beira de uma grande floresta com árvores e plantas exóticas num belo exemplo de integração entre utilização natural dos recursos e urbanização. Chapeuzinho Vermelho vivia com sua genitora, à qual ela tinha o hábito de chamar como "mãe". No entanto, a utilização deste termo não implicava que ela trataria com menos respeito outras pessoas com as quais ela não tivesse uma grande ligação biológica. Da mesma forma ela não pretendia denegrir ou menosprezar os valores tradicionais das estruturas familiares. De qualquer forma, Chapeuzinho insiste em registrar que lamenta se alguma destas impressões pejorativas possam ser deduzidas desta estória.

Um dia, a Mãe de Chapeuzinho Vermelho pediu que ela transportasse uma cesta de frutas sem tratamento químico, e água mineral para a casa de sua avó.
- "Mas, mãe, tal iniciativa não seria roubar o trabalho de pessoas sindicalizadas que lutaram anos a fio pelo direito de exercer sua atividade profissional na qualidade de transportadores?"

A Mãe de Chapeuzinho garantiu-a que todas as formalidades já haviam sido providenciadas junto ao sindicato de transportadores e o formulário autorizando esta missão autônoma já estava devidamente carimbado.

- "Mas, mãe, você não está me oprimindo com esta ordem?"

A Mãe explicou-lhe que é impossível que uma mulher oprima outra mulher, posto que todas as mulheres são igualmente oprimidas por uma sociedade machista.

- "Mas, mãe, não deveria ser o meu irmão, na sua condição de opressor, que deveria se encarregar desta tarefa no intuito de aprender a condição de oprimido?"

A Mãe lembrou-lhe que seu irmão estava participando de uma passeata pelos direitos dos animais. Além disto, a tarefa em questão não poderia ser considerada uma típica tarefa feminina, mas sim uma atitude que visava o sentimento de comunhão e companheirismo entre mulheres.

- "Mas, mãe, não estaríamos, então, oprimindo a Vovó, através da mensagem subliminar de que ela esteja velha demais para garantir sua própria subsistência?"

A Mãe lhe assegurou que Vovó não estava doente nem incapacitada nos planos físico e mental, ainda que nenhuma destas condições implicassem considerar alguém inferior a pessoas ditas saudáveis.

Convencida e segura de seus atos, Chapeuzinho Vermelho partiu pela floresta. Várias pessoas consideram a floresta um lugar perigoso, mas Chapeuzinho sabia que este tipo de medo irracional está baseado em paradigmas culturais impostos por uma sociedade patriarcal que encara a natureza como um conjunto de recursos a serem explorados, e, que, por esta razão, acredita que predadores naturais são adversários. Outras pessoas evitavam a floresta por medo de ladrões e de marginais, mas Chapeuzinho acreditava que, numa sociedade justa e não hierárquica, todas as pessoas poderiam exercer seu direito de viver segundo suas próprias regras, sem serem taxadas de "marginais".

No caminho, Chapeuzinho passou por um lenhador e observou algumas flores; porém, momentos após, ela se viu frente a um lobo que lhe perguntou o que ela carregava na cesta. Chapeuzinho, lembrando-se que sua professora havia recomendado prudência quanto a estranhos que tentassem falar com ela, hesitou. No entanto, segura de si e consciente de sua sexualidade, decidiu responder ao lobo:

- "Eu estou levando mantimentos saudáveis para a minha Avó num gesto de solidariedade."

O lobo, então, comentou que não era seguro para uma menina passear pela floresta sozinha.

- "Eu me sinto completamente ofendida pelo seu comentário sexista. Apesar disto eu decidi ignorá-lo por causa do seu status social de excluído. A pressão da sociedade é a verdadeira responsável pelo desenvolvimento deste seu ponto de vista alternativo. Agora, com licença, pois vou retomar o meu caminho".

O lobo, provavelmente devido à sua condição de excluído, pôde adotar um pensamento não-linear, fora dos padrões ocidentais e da moral judaico-cristã, que o levou a utilizar um caminho alternativo para chegar antes de Chapeuzinho à casa da Vovó. Lá chegando, devorou (lato sensu) a Vovó, numa ação afirmativa de sua condição de predador desprovido de escrúpulos. Então, movido por noções rígidas e tradicionais de comportamento, o lobo vestiu a camisola da Vovó e deitou-se na cama, cobrindo moralisticamente todas as suas partes que poderiam denunciá-lo (anatomicamente falando).

Chegando à casa da Vovó, Chapeuzinho sentenciou:

- "Vovó, eu lhe trouxe um lanche gratuito para saudá-la em sua condição de sábia e madura matriarca!"

O lobo respondeu suavemente:

- "Venha cá, minha netinha para que eu possa te ver ..."

- "Nossa! Vovó, que olhos grandes que você tem!"

- "Você esquece que eu tenho certas deficiências visuais totalmente compatíveis com minha idade, apesar disto não afetar em nada minha capacidade ou qualificação como ser humano é válido para a sociedade."

- "E Vovó, que nariz enorme você tem ..."

- "Naturalmente, eu poderia ter mudado isto, mas resolvi não ceder às pressões sociais da estética e do consumismo."

- "E Vovó, que dentes afiados você tem ..."

Nisso, o lobo, não agüentando mais o proselitismo da discussão e numa típica reação de seu meio social, saltou da cama pegando Chapeuzinho, abrindo a bocona... Chapeuzinho, reconhecendo o lobo, retorquiu:

- "Eu creio que você está esquecendo de me pedir permissão para aumentar o nosso nível de intimidade."

O lobo, surpreso, ficou sem ação e, neste momento, o lenhador entra pela porta agitando seu machado:

- "Não se mexa!"

- "O que você pensa que está fazendo?" Perguntou Chapeuzinho. "Se eu lhe deixo me ajudar agora, eu estarei expressando uma falta de confiança em mim mesma e em minhas capacidades - o que causaria uma tremenda falta de auto-estima que poderia se refletir inclusive no meu desempenho escolar."

Porém, o lenhador não se intimida e responde:

-"Última chance baby, afaste-se desta espécie protegida, eu sou um agente credenciado do IBAMA".

Como Chapeuzinho não considerou fundamentada a imposição imperialista e policial, o lenhador, num movimento seco, deu uma machadada certeira na contraventora.

- "Ainda bem que você chegou a tempo!" - disse o lobo aliviado.

- "Esta jovem e sua Avó haviam me capturado nesta ideologia de violência".

- "Não." - diz o lenhador - "A verdadeira vítima aqui sou eu, que tive que lidar com minha raiva profunda e encarar de frente todos os meus fantasmas. E ainda vou ter que lidar com o imenso trauma de ter tido contato com uma parte violenta da minha essência, para a qual minha formação pessoal não estava preparada a enfrentar".

- "Eu sinto sua dor", condescendeu o lobo.

E os dois se abraçaram fraternalmente.

Um comentário:

Unknown disse...
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